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Sebo O Geraldo: o labirinto dos livros

Um dos maiores sebos de Fortaleza resiste em meio às perdas ocasionadas pela pandemia

Por Juracy Oliveira


Frequentadora mais ou menos frequente do Sebo O Geraldo há quase dez anos, o mais completo assombro ainda acompanha toda vez que eu entro no local. Ou melhor, é um assombro que aumenta na mesma medida em que se avolumam os livros nas pilhas, que agora chegam, sem qualquer pudor, ao teto.



Fachada do Sebo O Geraldo. - Foto: Juracy Oliveira

É a única sensação possível diante de um labirinto digno de ser nomeado como ‘A Biblioteca de Babel’ ficcionalizada pelo literato argentino Jorge Luis Borges. O sebo, ao seu modo, também é composto por sequências quase infinitas de prateleiras e volumes que guardam os livros possíveis de serem escritos pelo invento humano, como um catálogo da totalidade livresca dentro de um universo caótico.

A trajetória do Seu Geraldo nesse ramo dos livros começou em meados dos anos 1960, como vendedor nas calçadas da Rua Guilherme Rocha. Semianalfabeto e sem emprego, foi chamado por um colega para ajudá-lo na venda de revistas usadas. Deu-se bem no negócio, logo vieram os livros como principal produto de venda.

No começo, o comércio ocorria apenas no turno da noite, não apenas por conta da fiscalização da prefeitura, mais dura ao longo do dia, mas também porque Fortaleza era outra. O centro era ainda uma região bastante frequentada nesse horário, por conta da concentração dos grandes hotéis na região.

Foram cerca de dez anos trabalhando nas calçadas das ruas do centro da cidade, período em que várias vezes perdeu toda sua mercadoria para os fiscais que, sem pena, levavam tudo. Depois disso, outros vinte anos, ou mais, trabalhando ainda na rua, mas agora dentro de uma banca montada na Rua Senador Pompeu; o vendedor lembra que a primeira banca de madeira lhe foi dada por um empresário penalizado com sua situação diante da fiscalização.

Em seguida, vieram os pontos comerciais. Primeiro na Rua Pedro Pereira, que, depois de dois anos, ficou pequeno demais para o estoque, depois na Avenida Tristão Gonçalves, quando chegou a manter duas lojas, mas as obras do metrô inviabilizaram a continuidade do comércio na região. Embora as datas sejam sempre um pouco nebulosas na narrativa memorialística do sebista, creio que foi por volta da década de 90.

É nesse último ponto comercial que Estela entra na história. Eles passam a trabalhar juntos depois que Seu Geraldo se casa com Albaniza, irmã de Estela. Em 2000, eles alugam o ponto comercial atual. O sebista já possuía um estoque razoável para preencher parte do local, de modo que não demorou até que fizesse dois galpões e um compartimento, no quintal daquilo que já fora uma casa, à medida que o número de livros foi aumentando gradativamente.

Localizado na Rua 24 de maio, 950. O endereço é conhecido pelos mais ardorosos amantes e caçadores de livros. Local de leitores, de estudantes e dos intelectuais que ainda ousam andar pelo centro da cidade. A frente do sebo é composta por uma indefectível fachada verde, cujo simples olhar jamais deixaria entrever que se trata de uma casa que abriga mais de 200 mil livros de todas as áreas do conhecimento.

A entrada consiste num corredor cercado com os livros velhos e sem grande valia: dicionários, enciclopédias, manuais; são os títulos mais baratos que, até outro dia, podiam ser adquiridos por um real. Ao fundo, vê-se a mesa e a cadeira da qual Seu Geraldo poucas vezes levanta. A figura mítica que dá nome ao local é um senhor de 80 anos taciturno e pensativo, de fato, ele parece até um pouco bravo, mas basta ganhar um pouco de intimidade, insistir e puxar conversa que ele se revela mais falante e começa a contar suas histórias. Ao lado e em cima da mesa figuram os livros recém-chegados, todos amontoados, local onde sempre é possível encontrar alguma preciosidade escondida.

Nas estantes por trás do espaço ocupado pelo sebista, além dos livros, figuram bibelôs, estátuas e bonecos, alguns desses adornos fazendo referência ao fato dele ser torcedor do time do Fortaleza. São adornos que compõem a entrada quase imutável do estabelecimento. Junto a isso, o aviso, “Proibido levar livros dentro da camisa”. Não que o cartaz impeça a ação furtiva de visitadores mal intencionados. Por isso, não são poucas as histórias de furtos gravados na câmera de vigilância e interceptados antes da saída do local.

Se o Seu Geraldo guarda a entrada do sebo, recepcionando os clientes ao seu modo, Estela, por outro lado, não para quieta. Ela gerencia a loja e está constantemente às voltas em busca de algum livro perdido, que talvez somente ela seja capaz de encontrar na imensidão de títulos. Retorna à entrada sempre que chamada para negociar livros, seja para comprar, trocar ou para vender, afinal, ela a responsável pelo valor final dos produtos. Mesmo com o preço rabiscado na primeira página de cada livro, ela quase sempre fornece um desconto, principalmente para os frequentadores de longa data.



Estantes cheias de livros do Sebo O Geraldo. - Foto: Juracy Oliveira

Numa ida usual ao Sebo O Geraldo, há toda uma movimentação compassada: escrutinar as obras em busca de algo para nosso próprio acervo; passear pelos infindáveis corredores, dentro de uma organização um tanto caótica baseada na disposição das estantes e cuja descrição precisa sou incapaz de ensaiar; ver os gatos se espreguiçando manhosamente nas pilhas de livros ou pelo chão; tomar um cafezinho já morno da garrafa térmica; conversar um pouco com Estela, para falar da vida e também para perguntar pela disponibilidade de um ou outro título; lavar as mãos porque os dedos ficaram sujos com a poeira inevitável; cansar e sentar à mesa com Seu Geraldo para ver o movimento.

Esse seria um itinerário comum num dia de sábado, o dia de maior clientela no sebo. Mas a pandemia acarretou numa notável diminuição no número de frequentadores; segundo Seu Geraldo, não é mais como antigamente, “cheio de gente aqui dentro”. Nos dias da semana, pela manhã, aparecem uns poucos “gatos pingados”, melhora à tarde, porém, nada comparável com o tempo anterior à peste. O melhor dia continua sendo sábado, quando as pessoas têm folga para se perderem entre os livros.

O sebista afirma, “gente que é viciada em ler mesmo, esse tem que vir”, comparando o vício pela leitura ao jogo e à bebida. Talvez seja precisamente a função narcotizante dos livros que não deixa ruir o mercado livreiro, pois embora haja quem diga que “livro não vai vender mais”, é uma profecia que nunca se realiza por completo. Sempre haverá leitores porque “o povo precisa de leitura”.

Apesar dos tempos difíceis, ele atesta: “aqui é para sempre. Todo tempo vende”. O vendedor explica que, enquanto as livrarias fecham, os sebos se mantêm porque investem menos para manter uma margem de lucro similar. Mas, claro, ele conhece histórias de sebistas antigos que faliram nesse período, colegas que pararam de vender livros e casas de livros usados na Praça dos Leões, por exemplo, que fecharam.

Todavia, inclusive aos sábados, tem aparecido mais gente para vender do que para comprar livros. Trata-se de uma especificidade bastante interessante dos sebos, pois o consumidor é também fornecedor em potencial. Afinal, é por meio desse público que o estabelecimento adquire livros e mantém a rotatividade dos títulos dentro da loja. Nesse caso, os clientes têm aproveitado o tempo mais livre para ler, nesse período da pandemia, e chegam com sacolas de livros lidos para trocar por outras obras.

Então, Seu Geraldo explica um pouco sobre esse ramo: “a gente pega os livros para vender”; a obra chega e logo sai, depois entra outra no lugar, pois consiste num acervo em constante mutação, “quem vai comprar e se apegar é o cliente”, complementa Estela. Quase sempre os dois aceitam os títulos oferecidos, mas nesse comércio com cliente é preciso ter alguma vantagem, seja trocar um livro por dois ou seja trocar um livro por outro, mais o dinheiro da diferença de valores. Isto porque um livro vendido ao sebo é sempre mais barato, para garantir a margem de lucro do sebista, que também não é muita.

Aceitam quase de tudo porque também querem agradar os clientes. Por exemplo, na compra de vinte livros, o sebista diz que apenas um ou dois servem para venda, compra-os porque sabe que sairá barato. Com esses dois títulos, pode receber de volta aquilo que pagou mais algum lucro; o restante fica para os consumidores ou vai para reciclagem, destino final dos livros sem serventia, que atualmente são doados para catadores. Parece extremo, mas é evidente que o estoque já abarrotado não comporta mais massas excedentes de papel.

No momento, as portas do estabelecimento permanecem abertas das 9 horas até 17 horas, embora Estela e Seu Geraldo cheguem uma hora mais cedo, para organizar o estoque e as vendas pelo Instagram O perfil @seboogeraldo já conta com 5.700 seguidores que acompanham as publicações dos livros disponíveis no acervo; os anúncios ocorrem principalmente nos stories para ofertar os títulos que chegaram mais recentemente ou que têm mais apelo de venda. A partir disso, os clientes entram em contato fazendo a reserva da obra para entrega ou para buscarem no sebo.

Segundo Estela, foi o Instagram que ajudou a loja a se reerguer, pois estavam de mãos atadas sem poder receber os clientes durantes os decretos de isolamento social mais rígido. Logo tiveram a ideia de criar uma conta, ela relembra: “mal começamos a publicar os livros e já apareceram seguidores”; os amigos e clientes também compartilharam a página com seus contatos. Por isso, a parceria com a rede social é encarada de forma positiva, afinal, foi a única forma de contato com a clientela durante algum tempo e continua dando um bom retorno em termos de vendas.

Naturalmente, a venda pelo Instagram não equivale ao que acontece no espaço físico, além de vender bem menos. O sebo é entrar, perder-se, garimpar pelas estantes e encontrar um livro ao acaso ou dois, ou mais – um talento único pouco desenvolvido para quem não ocupa aquele habitat com regularidade. Desse modo, a ida à loja permite que o cliente vá em busca de uma obra, mas leve outra também.

No período da pandemia, entre 2020 e 2021, calculam que a queda no faturamento foi algo em torno de 75%. Como um todo, o comércio vai mal, a queixa é a mesma não apenas no mercado livreiro; recentemente, houve uma queda até nas vendas pelo Instagram. Mas Estela e Seu Geraldo consideram esta apenas uma má fase, por enquanto, tem sido possível aguentar com a loja aberta, mantendo os quatro funcionários e pagando as contas de aluguel, energia elétrica, água e telefone.

Ao fim e ao cabo, o sebo é lugar de memória tanto quanto o livro usado é um objeto com memória, por assim dizer. Não é novo, não tem cheiro de novo, mas carrega uma história, marcas, dobraduras, grifos e riscos até de marca-texto. Alguém já leu e tocou aquela obra antes de nós, de modo que é possível achar inscrições, cartas, fotos ou até dinheiro velho em meio aos papéis. Por isso, o sebo continua sendo um lugar de potência, onde é possível encontrar de tudo um pouco, sejam livros, memórias ou narrativas.

Se a eternidade do universo é justificada pela existência de uma biblioteca sem fim na ficção borgesiana, que os sebos possam permanecer como refúgios, acumulando sem cessar os volumes preciosos de todas as épocas. Que continuem incorruptíveis às intempéries dos anos ruins, estando abertos para as próximas gerações de leitores, que encontrarão naquelas pilhas explicações de ordens secretas do mundo e soluções para aquilo que sequer haviam pensado. Enfim, meu desejo é que o sebo O Geraldo continue a prometer o infinito aos leitores.



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