Uma visita à livraria Arte & Ciência
Por Vanessa Freire
Morar nessa parte da cidade nunca foi tão solitário como agora. Antes, via da janela do meu apartamento, diversos ônibus indo e vindo, estudantes correndo para chegar no campus, trabalhadores parados na esquina da avenida, na fila dos carrinhos de comida. O meu dia já começava com toda essa confusão e esse barulho. Apesar de morar quase do lado da universidade, sempre tive o costume de acordar muito cedo para aproveitar o ar mais tranquilo que o começo do dia, na avenida 13 de maio, trazia para esse local tão caótico durante o restante do dia. Andar pela calçada, com o vento frio da manhã e com a vista dos primeiros raios do sol era um tipo de terapia para aguentar as correrias do dia a dia de uma estudante de jornalismo.
Estudar na Universidade Federal do Ceará sempre foi um sonho. Morava desde criança ao lado do campus do Benfica e sempre via jovens andando com a mochila nas costas e carregando diversos livros. Escolhi jornalismo, dentre outros motivos, por gostar tanto de ler. Cresci ouvindo meus pais contando histórias e mais histórias e, quando aprendi a ler, nunca mais larguei um livro e vivo assim desde então. As bibliotecas e livrarias sempre foram a minha segunda casa. Me sentia viva e feliz estando rodeada de histórias ainda não descobertas por mim.
Fachada da livraria Arte & Ciência em Fortaleza. - Foto: Divulgação/ Instagram Arte & Ciência
A primeira parada do dia na minha caminhada matinal era na Livraria Arte e Ciência, uma das muitas livrarias que existiam no meu bairro. Gostava dela porque era bem perto de casa, os livros tinham uma boa qualidade, os preços não eram absurdos e o vendedor (seu Weslley) era sempre simpático e conversador. Era quase lei passar toda manhã e topar com ele abrindo a porta da livraria com uma mão e segurando um copo de café preto com a outra.
-Bom dia, seu Weslley.
Ele olhava para trás e sorria.
-Bom dia, Ju. Quer entrar?
Eu normalmente aceitava e passávamos um bom tempo conversando sobre livros. Ele limpava e preparava a loja para os clientes enquanto me respondia as diversas perguntas que eu sempre tinha. Nossa última conversa foi sobre o mercado de livros, estava curiosa como ainda algumas livrarias continuavam de pé perante a concorrência que surgiu com a digitalização dos livros.
-Ainda temos clientes muito fiéis - ele me respondeu – Tem pessoas que compram com a gente há décadas. Apesar da facilidade que essas tecnologias trouxeram, não há como comparar a sensação de pegar um livro novo, tocar nele, sentir as emoções das histórias e sentir a concretude dela nas suas mãos. Isso, Ju, não tem comparação.
Ele falou isso enquanto pegava um livro da Virginia Wolf, minha autora favorita, e colocava na minha mão.
Eu lembrava disso com um sorriso no rosto e uma sensação nostálgica. Caminhar, agora, por aqui é solitário. Os ônibus não são tão cheios, não tem mais alunos correndo para chegar na aula e nem filas de trabalhadores tomando o café da manhã. Também não tinha o seu Weslley com um copo de café na mão abrindo a livraria.
A pandemia veio e causou toda essa solidão. Agora, caminho com uma máscara no rosto e o álcool em gel nas mãos. Perdi aquela sensação de liberdade que o vento matinal me trazia. O medo e a saudade são mais presentes em minha vida agora.
Enquanto caminhava em frente à livraria Arte e Ciência, notei uma movimentação incomum lá dentro. Cheguei mais perto e olhei pela porta de vidro.
-Seu Weslley?
Ele virou surpreso e sorriu para mim. Veio até a porta e a abriu.
-Quer entrar?
Sorri para ele e entrei. Ficamos em uma distância razoável e ele deixou a porta aberta para o ar circular. Sentei no banquinho de sempre e ele ficou no balcão da loja.
-Não sabia que vocês ainda estavam abrindo.
-Não estamos, mas, de vez em quando, venho aqui limpar o local e catalogar os livros. Não sabia que ainda caminhava de manhã.
-Eu parei por um tempo por causa da pandemia, mas caminhar me relaxa e me faz esquecer do terror que estamos vivendo.
-Nem me fale.
-Mas, me conta, está dando para manter a livraria mesmo na quarentena?
-Olha, Ju, está mais difícil. Ainda não podemos abrir a loja e, mesmo se pudesse, os alunos da universidade não estão tendo aula, e eles são boa parte do nosso público. Mas a gente está lidando até bem com isso. Estamos interagindo mais nas redes sociais e agora temos a opção de entrega em domicílio, então, muitos dos nossos clientes já conhecem bem o nosso acervo e encomendam on-line mesmo. E também isso possibilitou que novas pessoas encontrassem nossa loja. Isso ajudou nas nossas vendas, mas ainda está difícil, para todo mundo, né.
-Sim, muito. Mas que legal que vocês encontraram essa forma de continuar o negócio de vocês, ainda mais agora que o governo está cortando tanta verba.
-Sim, eles ainda deram um auxílio para gente, mas não é suficiente, perdemos muito com a pandemia. Falando além do financeiro, nós não temos mais o contato diário com os clientes, sinto falta da música tocando e de ver jovens andando por aqui. Sinto falta das nossas conversas também, Ju.
-Eu também, seu Weslley. Sinto falta desse local, da vida de antes. Está difícil, né?
-Muito, mas somos brasileiros, vamos conseguir.
Nós dois rimos. Eu levantei do banquinho.
-Foi muito bom te ver, seu Weslley. Espero que tudo volte ao normal o quanto antes. Tenho que ir, está quase na hora da aula.
-Deus, acho que nunca conseguiria assistir aula por uma tela.
-É muito diferente, demorei para me acostumar.
-Espero que melhore, Ju. Nos vemos por aí.
-Sim, até mais, seu Weslley.
Saí da livraria me sentindo um pouco melhor com a conversa e com o reencontro. Esses contatos pessoais, que já não tenho há muito tempo, me energizam e me trazem um pouco de esperança para superar essa situação.
Livraria Arte & Ciência
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